sábado, 5 de novembro de 2016

Álvaro de Azevedo Marques Junior


Alvão








          O Alvão era o meu professor de Direito Civil, digo era, porque não é mais, partiu... Foi mais um que desapareceu das pessoas que amo... Digo que o amo porquê o amo, como diz Fernando Pessoa:
" Amo como ama o amor. Não conheço nenhuma outra razão para amar senão amar. Que queres que te diga, além de que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?". Era um amor de admiração, pois não conseguia entender, eu até uma neurologista, ter um professor de idade já avançada e tão ativo e competente, dando suas aulas, para tantas turmas da faculdade, indo e vindo, tendo uma vida independente, admiro essas pessoas...
          Já no primeiro ano da faculdade, antes mesmo, de ter aula com ele, já via o tal "velhinho", digo assim, porque ele próprio se autodenominava desse modo, porque acho que ninguém é velhinho, todo mundo é uma alma, umas mais bonitas e outras mais feias... Ele era uma alma bonita, se via de longe, só por ser um professor, aquele que quer ensinar, que quer transmitir seus conhecimentos tão difíceis de serem aprendidos é um herói, pelo menos neste país que sabemos que os professores não são muito valorizados... Os alunos tinham medo dele, diziam que a prova era difícil, que haviam duzentas perguntas para serem estudadas e decoradas para a prova, e que era uma catástrofe... Eu não via assim e pensava, gosto dele mesmo assim... 
          Então, uma surpresa aconteceu, fiquei sabendo, não me lembro como, que ele havia estudado com o meu padrinho Antônio Gouveia na segunda turma de Economia da Fundação Santo André (FSA), como não acredito que acasos não existem, fui perguntar para o meu padrinho se ele se lembrava dele, sim, meu padrinho lembrava, da mesma forma, eu fui para o Alvão se ele lembrava do meu padrinho, mas ele não lembrava... Pensei, não faz mal, quem sabe se encontram na minha formatura e se reconhecem, conversam, lembram dos tempos antigos, e tudo será divertido e engraçado... Meu padrinho já está convidado, será meu padrinho da formatura de Direito, como foi de Batismo e da Faculdade de Medicina, pensei nesse reencontro, porque a vida é feita de conexões das quais nem imaginamos..
          Quando começaram as aulas de Direito Civil II com ele no segundo ano, não tinha me enganado com minhas expectativas, ele era um excelente professor, explicava tudo direitinho, todas as leis, dava exemplos muitas vezes engraçados, eu me divertia muito, quando podia tirava uma foto com o celular escondida para mostrar para meu filho Lucas de 9 anos que eu tinha um professor velhinho, ele vibrava... 
          O que ele escrevia na lousa era difícil de entender, mesmo porque, eu como médica já via a dificuldade dele em elevar o ombro, havia uma limitação, era evidente, mas ele ignorava... A fala, às vezes devido a própria idade, também era difícil de entender, mas após seis meses já estávamos entendendo até o que ele escrevia na lousa.  Os alunos mais novos não compreendiam as dificuldades dele, mas eu, como médica, neurologista, clínica geral sabia de tudo e só podia olhar para ele e admirá-lo...Ele me chamava de Regina, não de Lilian, é são poucas pessoas que me chamam pelo meu segundo nome, ele dizia que era Regina significava rainha... Eu ficava morrendo de desapontá-lo e ir mal na prova dele, mas isso não aconteceu... Ficava feliz porque iria ter mais um ano inteiro, o terceiro ano, de Direito Civil com ele...    
          Às vezes, eu via o Alvão chegando e indo embora da faculdade com sua pasta de apontamentos na mão, andar incerto da idade, ficava meio apavorada e pensava comigo: "- Ai meu Deus se ele tropeça e cai, nestas escadas e rampas, fechava os olhos e pensava firme que isto não iria acontecer". E não aconteceu na faculdade, mas ele caiu, como tantos outros velhinhos caem... Na residência de neurologia fiz um trabalho junto com a geriatria sobre "Quedas em idosos" e como isso era frequente e avassalador para os idosos, lembro que eu ia ao Ambulatório de Geriatria, entrevistava os idosos e era cada coisa que acontecia que só com anjo da guarda mesmo...
          Infelizmente a história teve um desfecho triste, ele caiu e acabou indo, faleceu... Eu gosto do termo "desaparecimento", não faleceu. Aprendi esse termo com um idoso de 93 anos, que como o Alvão, é um perfeito gênio, tem as limitações do corpo, mas o cérebro está lá, funcionando bem e a todo vapor... Quando o filho dele, que era meu melhor amigo, faleceu com cinquenta e um anos com infarto fulminante, e seu Lysis, com oitenta e sete anos dizia quando conversávamos e conversamos: "- ...desde o desaparecimento do Flavio etc", eu gostava do termo que nunca havia ouvido " desaparecimento", então penso, não, eles não morreram, eles desapareceram, mas estão em algum lugar... 
          Quantas saudades professor!















Lilian Regina Gonçalves
05/11/2016     

Nenhum comentário:

Postar um comentário