Salmos na parede do quarto
Era a penúltima paciente dos quarenta e três que atendi hoje. Já não lembro seu nome, era uma senhora de aproximadamente setenta e poucos anos. Entrou se queixando de dor nos ombros, do ombro passou para o peito, do peito passou para as pernas e ia continuar, mas já tinha me perdido nas dores dela e pedi para ela parar para eu poder lembrar onde era a primeira dor... E então, depois de me falar de todas as dores, ela disse que na verdade não era pelas dores que ela estava lá, mas sim por causa das visões. Eu tive que frear meu pensamento em segundos e sair da sequência das dores para as visões. Meu pensamento deu uma volta de cento e oitenta graus e falei: - Mas como, que visões? Ao mesmo tempo fui abrindo seu prontuário recheado de folhas de evolução de várias especialidades, ortopedia, reumatologia, oftalmologia, endócrino e minhas evoluções... Enquanto eu folheava o prontuário ela ia me falando das visões: - Doutora, eu sou diabética, tenho glaucoma, e não enxergo quase nada, mas quando eu deito para dormir começo a enxergar palavras e letras no teto do meu quarto e nas paredes. Essas palavras são passagens dos Salmos da Bíblia, várias frases de aconselhamento, eu fico lendo na parede e no teto as palavras e frases passando e passando, mas o pior é que não consigo dormir... A irmã da paciente estava do lado, e então perguntei se ela morava junto com ela, a irmã disse que sim e complementou: - Doutora, eu não consigo entender se ela tem glaucoma e está quase cega, como ela pode ver isso e ler tudo isso? Ela diz que vê tudo isso lá no quarto dela. Em seguida a paciente começou a descrever um homem que tinha visto branco, gordo de blusa azul, relógio grande no pulso e por aí ia, e ia... Quando achei uma anotação de um eletroencefalograma alterado na sua evolução. Expliquei que ela tinha um foco irritativo no cérebro e por isso tinha essas alucinações visuais. Perguntei se ela estava tomando o medicamento que eu havia prescrito e ela começou a falar uma lista de remédios, remédios e remédios e nada do remédio que eu prescrevi... Eu tive que falar para ela parar de falar a lista de remédios e perguntar diretamente se ela tomava o remédio que eu havia prescrito. Então ela disse: Ah! Esse! É! Tomo, tomo...! Na verdade fiquei sem saber se ela estava ou não fazendo o tratamento que eu havia recomendado... Mas ela queria continuar falando das visões, e palavras e salmos etc... Fiquei pensando até que ponto nossos sentidos podem estar transmitindo uma atividade elétrica cerebral normal ou alterada? Mesmo que essa paciente tivesse um eletroencefalograma normal, eu não poderia afastar foco irritativo no sistema nervoso central. Agora me pergunto se todas as pessoas que viram santos conversaram com espíritos, com Deus, teriam um foco irritativo no cérebro? Será? Tudo é fruto de um distúrbio elétrico cerebral? Não sei, realmente não sei... Quantas histórias estranhas que escutamos em toda parte do mundo, histórias antigas que quase se perderam no tempo... Alucinações? Realidade? Enfim, pedi uma dosagem sérica do anticonvulsivante que a paciente está tomando, associei outra medicação anticonvulsivante. Vamos ver se ela está tomando a medicação direitinha, se as visões desaparecem e ela se convença que não está vendo coisas do céu, do além etc. Às vezes ser neurologista é não é fácil...
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