quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Pontada na cabeça







          Hoje a noite eu senti a "pontada" na cabeça que tanto os pacientes falam nas consultas... Não gostei!Também achei que iria morrer assim como eles falam. A pontada era igualzinha a que os pacientes descrevem, ou pelo menos parecida. Era como um arame entrasse atrás da orelha e chegasse ao topo da cabeça e cessasse no globo ocular. Não durou mais que dez segundos e se repetiu. Olhei para a criança que dormia ao meu lado, meu filhinho, que ainda irá fazer dez anos e pedi à Deus que não me levasse agora por ele. Eu não me importaria de morrer ali na madrugada, mas não, não podia deixar o menino órfão. Ele só tem os avós maternos que poderiam cuidar dele, mas já estão velhos e podem morrer também... O que seria do menino? O que a Justiça, que não é nada justa, faria com uma criança de dez anos, o quanto ela sofreria?
          Acho que Deus ouviu-me e as pontadas sumiram, não apareceram mais durante a noite... Fui beber um copo de leite frio para me acalmar das tais pontadas que tanto os pacientes falam, e falam, e falam... Realmente só podemos dizer algo do outro, quero dizer, de outra pessoa, se sentirmos, vivenciarmos, experimentarmos o que ela sentiu... Não sendo assim, só passa de especulações, divagações e dizer palavras falsas e melhor ficar calado. E lembro daquela frase que circula na internet: "Se quiser falar de mim, calce os meus sapatos e dê três voltas pelo mundo inteiro.
          Além do menino que dormia serenamente ao meu lado, pensei nos próprios pacientes, porque essa semana um fato engraçado ocorreu... Insistiram que o consultório, no qual atendo os pacientes, era quente demais para eu ficar sem um ventilador. Falei que atenderia assim mesmo, porque na realidade, não sei porque, o ventilador dava medo, não é a sala que costumo atender, então não o conhecia (o ventilador) que não é patrimônio da Prefeitura, porque está escrito nele próprio, deve ter sido trazido por algum médico. O ventilador deve ter uns 40 anos, velhinho, sem aquela parte protetora da frente, só tem as hélices a girar bem rápido, não posso dizer que não seja bom... O ventilador estava ligado e voltado mim, mirando para minha cabeça, Eu não tinha nem percebido...               Eis, que entrou uma paciente com seu marido, e comecei a consulta. No meio da consulta o marido interrompeu tudo e falou: " - Doutora, desculpe, mas esse ventilador não pode continuar ligado! A hélice pode soltar e matar a senhora! Ele está mirado para sua cabeça.Não queremos que a senhora morra, porque aí quem é que vai cuidar da gente? Não tem ninguém doutora!". Olhei para o ventilador louco, pensei nele como uma arma imprópria, aquela que não é realmente uma arma, mas pode vir a ser... Senti pelos pacientes caso, a hélice soltasse naquela velocidade e ceifasse minha vida... Sei que ninguém é insubstituível, mas realmente neurologista já é coisa rara, ainda mais no SUS na cidade Santo André, São Paulo. Eu não tinha pensado no ventilador, mas concordei com o acompanhante do paciente e falei: " - O senhor pode desliga-lo por favor?" Ele disse: " - Não doutora, essa sala está sem ar, vamos virá-lo para a parede, assim o ar circula pela sala...". Está bem, disse eu e assim foi feito. 
          Quando senti a pontada na cabeça, lembrei desse fato, e de todos os pacientes que necessitam de mim. Também pensei que não os podia deixar, sem neurologista...
Só sei que olho para o mundo e não estou de acordo, como dizia o Dr. Flávio Gikovate, que tem gente que nasce assim, olha para o mundo e não está de acordo, mas irá fazer o quê? Então lembro de um trechinho da poesia que mais gosto de Fernando Pessoa, heterônimo Alberto Caeiro, "O Mundo não se faz para pensarmos nele", eis o trecho:


"O Mundo não se fez para pensarmos nele 
(Pensar é estar doente dos olhos) 
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo..." 

É isso, e para quem quiser ler a poesia inteira:


O Mundo não se Fez para Pensarmos Nele

O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...

Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender ...

O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...

Alberto Caeiro, in "O Guardador de Rebanhos - Poema II" 

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